Carlos Eduardo Riccioppo
I
Quem lê Os parceiros do Rio Bonito, publicado por Antonio Candido em 1964, depara-se com um encontro inesperado entre o assunto do livro e a forma da escrita de seu autor. O manejo de conceitos importantes para a sociologia e para a antropologia vai transmutando o texto de autêntica ciência social a obra de qualidade literária, sem, com isso, converter a figura do caipira paulista em personagem distante de um romance qualquer.
Parece ser esse modo bem encontrado entre figura e forma aquilo que a exposição de Bruno Brito aprende com o texto de Candido, de onde empresta seu título – Mínimo Vital. Nos trabalhos do artista, coisas que existem vão decantando modos específicos de desenhar (ou de repetir no traço) e esculpir (ou talhar a madeira), de maneira que esses desenhos e objetos, antes de imitarem imagens de um vocabulário caboclo, dos utensílios aos elementos que compõem a paisagem e o dia-a-dia do campo, demoram-se muito mais sobre seus modos de construção.
Note-se, de saída, a ênfase nos instrumentos e objetos de uso que compõem os desenhos de Bruno: em um, martelo, pregos, serrote, enxó, nó e argola, viola; em outro, pilão, monjolo; ainda em outro, facão, remo, machado. Do mesmo modo, repare-se nas semelhanças semânticas entre o coador de café, os objetos cerâmicos, as canoas e os mastros fincados; ou, então, nas recorrências formais entre a igreja e o rancho, ou entre os frutos e os animais: mexerica, cascavel, quatro ou cinco tipos de passarinho, peixe, bananeira, galinha, jatobá, aranha.
Não se trata de uma coleção qualquer, de um simples vocabulário. Essas figuras, por mais que se ofereçam sem escala umas com as outras, às vezes ordenadas numa mesma página e todas em preto e branco, deixam adivinhar uma inteligência que as repõe em ligação umas com as outras.
Às vezes é o instrumento desenhado de uma folha que se adivinha empregado na construção de um objeto de outro desenho; outras vezes é o material de uma figura de planta, que, descascado, equivale ao cabo de uma ferramenta; e outras vezes, ainda, é a superfície de um fruto que se repete no bojo de um pote, ou a coisa crua, in natura, que cozinha na fumaça ou que quara ao sol.
Não há, aliás, noite ou chuva nesses desenhos, como também não há cenas ou a tematização dos afazeres do homem do campo. Quando há figuras humanas, elas posam anônimas, ou muito de perto, oferecendo o instrumento musical ou o objeto que carregam, ou de longe, em relação imediata com o mastro em que se agarram ou no qual se apoiam.
Se há, nesses desenhos, algo daquilo que uma vez se pode ver em uma pintura de Almeida Júnior (estas que certamente foram responsáveis por fazer ingressar no imaginário da arte brasileira a vida caipira), isso aparece aqui aos trechos – ou nos braços que arranham a viola, ou no jogo de hachuras que desnaturaliza a paisagem, fazendo com que ela seja vista em seus elementos constitutivos, e não na forma idealizada de um lugar perdido.
Se se reparar bem, na verdade, falta nitidamente algo a esses desenhos: nenhum deles possui o frescor de quem teve à sua frente a coisa que representou. O lápis encerra em si cada figura, cada objeto, sem deixar entrar no desenho os indícios do espaço ao redor deles. Mal esses desenhos têm luz: quando se trata dos objetos de madeira, por exemplo, as regiões mais escuras dos desenhos podem facilmente não ser sombra, mas, sim, parte molhada da madeira; ou, então, podem referir-se a características próprias do objeto – nós, manchas, veios fortes. Quando são pássaros, o claro e o escuro se confundem com a diferença de coloração de penas (o mesmo vale para escamas); e quando se trata de tecidos, o sombreado forte, quebrado, é tanto efeito de luz quanto descrição do peso do tipo de pano retratado. Os guizos do chocalho segurado por uma figura em um dos desenhos parece que só brilham o suficiente para se veja que são de metal, enquanto as unhas da figura brilham em outra direção, e suas rugas se modelam para descrever a pele da gente mais velha.
O lápis de Bruno acompanha não a mimese do objeto, não a figura tal como ela é vista, percebida. Descreve, antes, algo que constitui as coisas. Traduz, aprende a sua direção e intensidade delas: lápis mais leve e sem vincar para fazer madeira mole, mais redondo pra fazer coisa lixada, hachurado e quebrado para objeto fibroso; vertical para o pilão cortado de tronco inteiro, horizontal para o cabo do machado e em movimento de para-brisa pra sua lâmina; esfumaçado pro aroma do café, tramado pro coador. Céus, montanhas, pasto, mata são montados de direções e preenchimentos de planos; paredes são caiagens de grafite.
Não se trata, então, de imagens de observação ou que olham para os elementos de uma cultura popular qualquer, mas de imagens que aprendem os modos como as coisas de uma determinada região são construídas. Se uma região determinada interessa para esses trabalhos, é porque permite captar uma inteligência, nexo ou sistema complexo de compreensão de todos os elementos que a compõem via uma temporalidade própria, que se apresenta dilatada nesses desenhos e objetos menos por conta do que se espera ser o ritmo da vida rural, e, mais, por conta da dicção literária, feita das cadências de uma narrativa que vai saltando aos poucos de um galho de goiabeira para o cabo liso de uma machadinha e, deste, para um encaixe em rabo de andorinha. Se não salta ainda diretamente dos desenhos aos objetos de madeira que os confrontam na exposição e que são igualmente talhados, lixados, embebidos em óleo natural, às vezes idênticos àqueles que os desenhos tematizam, mas que, talvez por conta de sua presença francamente sólida, de construção antes que de imagem, façam esquecer sua ligação necessária com aquela mesma dicção e se ofereçam à primeira vista como se já não possuíssem o lastro dos procedimentos que lhes deram origem, aparecendo ali como que nascidos de uma inteligência já abstrata.
II
De fato, chama a atenção nas madeiras talhadas de Bruno uma espécie de autossuficiência que apela a uma narrativa modernista: uma vez que nelas não parece haver imagens, à diferença dos desenhos aos quais se contrapõem, sua regra de construção parece já se ter autonomizado, conferindo-lhes um estatuto bastante semelhante àquele de quem viu uma coluna de Brancusi mais à luz de uma arte moderna que nascera sozinha, puramente construtiva, e menos repetida das cruzes e das colunas que todavia abundam nos campos da Romênia.
Não espantaria, então, que, diante desses mastros de madeira, nos pegássemos intuindo uma referência vaga à obra de um Volpi, ou, então, diretamente às festas de São João do interior do país, e antevendo, assim, uma espécie de interesse do artista no tema da cultura popular, trazida para seu trabalho como que à revelia do caráter marcadamente “culto” que ele possui. Afinal, embora a forma desses objetos de Bruno seja geometricamente compreensível, portanto bastante aparente – às vezes em zigue-zague, outras cilíndricas, e mais outras replicando ogivas ou ampulhetas multiplicadas –, eles ostentam de perto, em sua superfície, sua cor de madeira quase bruta, os gestos a facão e machado que os cortaram, suas cerdas soltas. Como se essas características fossem secundárias ou subsistissem apenas por uma resistência desses trabalhos ao polimento, à coloração ou a um tratamento que lhes conferisse seu aspecto acabado; como, portanto, se fossem uma camada de elogio a um estado de precariedade que pudesse simplesmente ser evitado com mais um ou dois passos no trato dos materiais (nesse sentido, os objetos do artista inspiram, ao olho rápido, um movimento de percepção contrário àquele que se pode adivinhar em seus desenhos: as madeiras parecem formas acabadas de longe, mas revelam-se repletas de “acidentes” de um trabalho manual, à maneira popular, de perto, enquanto os desenhos, de longe, são eles mesmos imagens de uma cultura popular, reagindo, mas somente de perto, a uma inteligência culta da linha).
Mas, talvez fosse possível olhar para esses trabalhos de Bruno de outra maneira, e as pistas de sua semelhança com esses mesmos “modernos problemáticos” – Volpi e Brancusi –, em certa medida periféricos em seu próprio tempo, que correspondeu à constituição de muitas das narrativas modernas que acabaram por se generalizar, pode ser um bom pretexto.
Digamos, de modo simples, que, embora passadas muitas décadas de sua aparição pública num meio que se internacionalizou, ainda não foi possível à historiografia da arte conceber uma relação entre essas duas trajetórias e as culturas populares de onde vieram sem apelar a termos como “referência”, “elogio”… Ou sem que se faça incidir sobre elas certa complacência, de um lado, ou, de outro, certo heroísmo: chamá-las de epigonais do processo moderno ou de capazes de produzir uma obra que vencera as premissas regionais, universalizando-se, acaba por escamotear uma relação entre arte e cultura local que talvez tenha permanecido nelas como um problema constitutivo, e não meramente como elemento acessório, ainda não absorvido pela lógica moderna.
Em trabalhos anteriores, Bruno já havia elegido a forma arquitetônica do arco; também se interessou por pintar fachadas, e por construir, com vergalhões de ferro, objetos vazados em forma de casas – este mesmo elemento reaparece em uma série de desenhos seus, Tipos de terreno para se erguer uma estrutura. Agora, os mastros volpianos se confundem com a memória brancusiana dos elementos verticais, e o solo dessa identificação recua para além do subúrbio do Cambuci e do interior da Romênia, reencontrando o cenário de meados do século XIX daquele mesmo Almeida Júnior, cujo esmaecimento é notado por Antonio Candido no Rio Bonito*.
Talvez tenhamos acreditado de modo demasiado certeiro que, no século XX, a forma precedeu o assunto – isto que já não nos permite confiar que as máscaras ibéricas tenham mesmo sido importantes para a navalhada cubista de um Picasso.
Contudo, os trabalhos de Bruno insistem em reascender a questão, e deve ser mesmo por isso que neles o elemento popular conviva tão sem a aderência imediata ou tão sem o colorido celebratório de muito do que se disse nas últimas décadas sobre essa cultura num país como o Brasil.
Em Bruno, é o talhado da madeira que vem de fora pra dentro mas não toca o centro do mastro o procedimento constitutivo do trabalho, e não a sobreposição modular de formas triangulares; assim como é constitutivo do trabalho que ele fique pronto quando a madeira se equilibrou sem ser somente tronco e passou a ser conservada assim, mas não quando perdeu sua figura e finalmente equivaleu a ferro ou concreto.
Setembro de 2017
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* “Desapareceram, ou estão desaparecendo: tipiti, prensa de mandioca, monjolo, moinho, engenhoca, pilão de pé, prensa manual, assim como as técnicas correspondentes. Não tardará o dia em que desapareçam também os pilões de mão, fornos de barro, peneiras, que ainda representam os restos do equipamento tradicional. O homem rural depende, portanto, cada vez mais da vila e das cidades, não só para adquirir bens manufaturados, mas para adquirir e manipular os próprios alimentos”.
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CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. (2. ed.). São Paulo: Duas Cidades, 1971, p. 142.
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